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Por uma clínica psicanalítica implicada: o Escuta na Rua e a formação em Psicologia

Por Jessica Isis Faria*



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Imagem: Daniela Delias


O desejo de escutar a cidade de Rio Grande percorreu vários caminhos até chegar à Praça Xavier Ferreira. Recordo de uma fala na aula de Fundamentos de Psicanálise: Quando se escuta uma pessoa, se escuta a cidade e o território que ela habita! Porém, sempre me questionei sobre o processo inverso: O que ocorre quando nos colocamos em movimento para fazer a escuta de uma cidade? Para Miranda e Félix-Silva (2022), o coletivo e o comum podem emergir de uma relação em que a escuta se dá com outrem. O Coletivo Escuta na Rua surgiu quando eu estava no início da graduação. Lembro das repercussões do primeiro encontro na praça: algumas pessoas apoiaram a perspectiva altruísta do projeto e outras criticaram a desconstrução do setting terapêutico.

Ao discutir a importância científica e o valor como método terapêutico da psicanálise, Freud (1930/2010) atentou para a necessidade de que a escuta psicanalítica fosse amplamente oferecida à população, considerando-se o sofrimento que emana da luta pelo cumprimento das exigências civilizatórias. Para o autor, desde o começo, a psicologia individual é simultaneamente uma psicologia social (1921/2011). A prática psicanalítica clínico política exige intervenções não convencionais e uma posição de invenção em direção a epistemologias e práticas acolhedoras de subjetividades periféricas (ROSA; ESTÊVÃO; BRAGA, 2017). Contudo, o acesso aos serviços de saúde mental no Brasil ainda é precário para quem possui alguma vulnerabilidade socioeconômica.

Sou estudante cotista, uma pessoa pobre que resiste no contexto acadêmico elitizado. Ingressei e permaneço no âmbito universitário por meio de Políticas de Assistência e Permanência Estudantil. Percebo, por meio da minha vivência, que produção e promoção de cuidado são muito deficitárias para pessoas marginalizadas, até mesmo no ensino e na formação em psicologia. Há uma imensa dificuldade em se deslocar de eixos do “saber-fazer” psicológico hegemônico e de possibilidades de atuação em psicologia. E, além de compreender o distanciamento entre a “ciência psicológica” e as comunidades à margem, percebo a necessidade de promover o retorno à população que não compõe o corpo acadêmico, visto que cursar ensino superior é um privilégio que poucas pessoas pobres conseguem acessar. Motivada por essas circunstâncias que conformam meu percurso na graduação em Psicologia e minha atuação política, ingressei no Escuta na Rua. A primeira reunião (online) do coletivo, em 2022, ocorreu no Dia Internacional de Saúde Mental (10 de Outubro). A professora-coordenadora apresentou a proposta de atuação-experimentação do grupo, bem como algumas dificuldades de ir para rua. Combinamos, nesse dia, que iríamos pensar sobre a viabilidade de operacionalizar esse movimento. Acionados os desejos, decidimos ir à rua de outubro a dezembro deste ano.

A primeira experiência que tive como parte do Coletivo Escuta na Rua foi no dia 18 de outubro de 2022. As anotações e expectativas para o dia circundavam o questionamento: “Que clínica é possível em meio à praça?”. Além disso, havia o desejo de não estar chovendo, e verificar se o projeto de extensão teria adesão da comunidade. Tais considerações se perfazem fundamentais, inicialmente. Assim, o deslocamento (físico), que é um longo caminho para mim, mobiliza tais pensamentos: “Que desejo me move na escuta? Que relação temos com o território que vivemos?”.

A primeira escuta que realizamos na praça foi a de um homem idoso que nos deu bom dia e perguntou ao grupo: Quem domina o mundo?, afirmando, a seguir, que são as mulheres. Após a sua retirada, olhamos umas às outras, percebendo que, até o momento, nosso coletivo estava sendo constituído apenas por mulheres. Ao nos acomodarmos nas cadeiras de praia, um símbolo do coletivo-território, agenciamos várias perspectivas, tais como: “Qual o uso das praças pelas pessoas da cidade? O que as pessoas fazem quando pisam por elas?”. As primeiras aproximações se deram com a leitura da placa que utilizamos para divulgar o espaço: algumas pessoas, apressadas pelo cotidiano, liam e retornavam os olhos, muitas olhavam para nós após ler a placa, outras liam sobre o atendimento psicológico gratuito e sorriam abertamente.

Além da escuta inicial destacada e outros breves encontros, realizamos 5 escutas no retorno à praça. Uma das escutas que mais nos marcou neste momento foi a de uma mulher, negra, que aparentava ter em torno de 40 anos. Ela estava tomando café e comendo pão. Apareceu detrás de mim e, inicialmente, ouvi duas vozes dizendo, como um sussurro ao pé do ouvido: O que vocês fazem? - A gente escuta. Após a resposta, que foi articulada por uma colega do grupo, ela elencou a narrativa de invisibilidade na qual é submetida diariamente, e disse algo como: Hoje vocês estão aqui ouvindo, mas se estão na rua passam por mim e não me dão nem bom dia, ninguém respeita o pobre!. A escuta dela não atingiu mais do que 5 minutos, mas foi tão intensa e voraz que nos deixou sem palavras, colocando o narcisismo do grupo em deslocamento. Estávamos escutando uma pessoa vulnerável dizendo de si, sobre sua dor em ser uma pessoa invisível, e tais considerações reverberaram, pois precisamos que a práxis da clínica psicanalítica seja implicada na escuta sensível de subjetividades marginalizadas. Mais do que isso, sua fala nos convocou a pensar sobre o compromisso ético-político em psicologia, que não se faz somente quando estamos adornadas como “psicólogas”, mas, também, no cotidiano.

Compreender a perspectiva delineadora da formação em psicologia no Brasil, como ciência e profissão, que, por sua vez, preconiza a manutenção de desigualdades, é fundamental para a análise do contexto sócio-histórico em que a produção e a promoção de saúde mental se articulam. Desta forma, o presente relato de experiência corrobora a perspectiva de que a prática de uma psicanálise clínico-política exige a criação de novas formas de intervenção que dialoguem com epistemologias e ações que acolham as subjetividades periféricas.

Nos munimos de afetos e desejos de continuar a jornada de dar espaço e visibilidade para pessoas à margem se fazerem validadas, com a perspectiva de uma clínica na qual de uma relação em que a escuta se dá com o outro pode surgir o coletivo e o comum. Os ritmos da periferia pulsam, formando um ecossistema de pessoas que transitam pelo centro da cidade de Rio Grande/RS. A poética do Coletivo Escuta na Rua se configura como um organismo vivo. No setting da escuta que performamos nos encontramos localizadas em meio à fluidez de narrativas. Somos o coração ou os ouvidos da praça?


* Este texto é uma versão do trabalho apresentado no IV Saúde Mental e Direitos Humanos (FURG/2022), sob orientação da Prof.ª Dra. Daniela Delias de Sousa.


REFERÊNCIAS


BARROS, Laura Pozzana; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 52 - 75.


FREUD, Sigmund. Prefácio e textos breves. In FREUD, S. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923), Tradução e notas: Paulo César de Souza: São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu (1920-1923), Tradução e notas: Paulo César de Souza: São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


MIRANDA, Deivison Warlla; FÉLIX-SILVA, Antônio Vladimir. As Subjetividades Periféricas e os Impasses para a Descolonização da Clínica Psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, 2022.


ROSA, Miriam Debieux; ESTÊVÃO, Ivan Ramos; BRAGA, Ana Paula Musatti. Clínica psicanalítica implicada: conexões com a cultura, a sociedade e a política. Psicologia em estudo, v. 22, n. 3, p. 359-369, 2017.


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Sobre a autora:


Mulher, gorda, bissexual, cisgênero, branca. 24 anos. Paranaense. Formanda em Psicologia na FURG. Atua no Grupo de Estudos em Saúde Coletiva dos Ecossistemas Costeiros e Marítimos (GESCEM/FURG). Extensionista no dispositivo clínico Espaço de Expressão. Integrante do Coletivo Escuta na Rua. Traz consigo a trama entre a Arte e a Psicologia como função social e política. Tal atravessamento permite a criação de uma rede de cuidado implicada no/com coletivo.



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