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Sobre Hunger, de Florence and The Machine, por Andrew Oliveira

Os semblantes se ocultam no cotidiano, de forma a não notarmos o sofrimento alheio e, até mesmo, o que vem de nosso íntimo. Não seria exagero traduzir a experiência da arte como uma tentativa de atingir um nirvana pessoal diante de todas as adversidades a que somos expostos. Nisso, surge a música, junto da literatura, como uma forma de expressar e projetar nossos incômodos, desejos, invejas, amores, pecados, verdades, equívocos, espaços: nossa condição demasiadamente humana é colocada em palavras, corpos amorfos que encontram na criação artística um vasto mundo para exprimir um corpo real, um corpo que toca o real sem se aperceber de tal ato.

Nesse sentido, encontramo-nos em um campo sinuoso, uma mente enigmática que através de uma realidade mística canta suas experiências, uma deusa mundana profanando magneticamente as tentativas do mundo de enquadrá-la em uma carne que não a sua. Por sua vez, esse arcano é Florence Welch, o tipo de cantora que não renuncia à dor, e se essa sensação tiver de ser o fim do amor, que assim o seja: os anjos não teriam capacidade para alcançar os seus vocais; mesmo quando os céus estiverem entorpecidos de tantas canções, ela será a estrela do norte para uma legião de artistas por virem, ou para aqueles batalhadores com uma visão única de que há algo errado na atmosfera, mas mesmo assim dançam coreografias para se libertarem do terror terreno, pois, no fundo, são selvagens, e assim resgatam estilhaços de uma humanidade.

Dessa forma, não é surpreendente notarmos que as massas sentem fome, uma fome para além do alimento de cada dia. Cobiçamos o mundo com nossos lábios, nossos dentes e nossas línguas. Tentamos deglutir cada partícula cabível em nosso princípio: saborear de forma lúcida qualquer tentativa de vivência, mesmo as que não deveríamos, pois elas arruínam nossas identidades, deixando-nos delicados como celofane, prontos para sermos rasgados imediatamente pela força intempestiva de um outro. Uma fome que nos corrói por dentro, uma força magnânima sem nome, de origem falha; como algo constituinte pode ser tão aversivo para com a própria existência? Algo que pulsa para além da pele, quebrando o ar ao nosso redor com um pesar impronunciável, é assim que essa fome toma conta do nosso corpo, tornando-nos incorpóreos, estranhos à nossa própria matéria.

Ficamos em suspenso, perguntando-nos: o que desejamos? Como atingimos e como pegamos o santo graal invisível nos liames sociais? Seríamos capazes de ser algo além? E se essa fome é tudo o que nos resta? Tanta fome, mas quando a música começa a tocar?

High as Hope é o quarto álbum de estúdio da banda Florence and The Machine, liderada por Florence Welch, a cantora que diante das multidões entrega seu corpo em uma performance nua, sem segredos, sem rodeios, dando o seu sangue para ser consumido. Como um Cristo contemporâneo absolvendo os seus seguidores através das batidas do seu coração, de sua voz não impessoal, não distante, ela grita para que sejamos resgatados, ela anseia tocar o outro e da sua dor criar um cosmos comum circundando a todos com a paz de apenas ser o que se é. Onde o Eu existe, e sendo uma parte ímpar, mesmo imergente desse coletivo, pode ser uma estrela na constelação de luzes em meio a multidão e lá não haverá solidão. High as hope é cru, desnuda-se da grandiosidade divina dos outros álbuns. Nesse trabalho, Florence medita sobre a sua própria fragilidade sem o uso de artifícios de natureza mágica.

Ao deixar de divagar sobre a sua persona como um Totem, Florence não parece querer ser a fada pela qual foi amplamente reconhecida. Mesmo sendo efeito do divórcio entre Céu e Terra, ela quer se encontrar nos outros, mesmo que para isso deva perpassar por suas cicatrizes e pelas aflições geradas a partir de sua passagem na vida das pessoas que tocou ao longo do caminho. Florence procura no padecimento uma tentativa de entrar em comunhão com o precipício, olhar para o seu abismo e, de alguma forma, pertencer ao imperativo do seu ser sem negá-lo. Assim, a imagem que ela procura é de um Eu perturbado pela sua respectiva hiância, o espaço entre o que ela é e ainda pode ser, visto que não somos seres totalizados e encerrados, somos seres da revolução. Florence anseia o seu potencial transformador, e através dele responder suas hesitações, intrínsecas da sua brandura.

A música Hunger começa com um coro distante, que aparenta fazer parte de uma experiência onírica, distante da realidade, na qual impera uma onda de desejos. O fato é propriamente retratado nos primeiros vislumbres visuais (em videoclipe da música), os quais reforçam de alguma forma essa ambientação longínqua, permeada pelos cruzamentos do que se encontra no inconsciente. Sendo assim, somos apresentados inicialmente ao desnudamento de uma estátua de semblante sereno e convidativo, cuja fisionomia rememora o período renascentista. Assim, surgem indagações: por que sua exposição traz certo interesse e até mesmo enternecimento? Pode-se entender esse pequeno ato como uma metáfora para o retorno do recalcado, aquele negado e evitado que, quando emergente, torna-se atrativo, pois a partir do seu aparecimento pode-se compreender a real movimentação do comportamento humano, o qual é regido pelas energias pulsionais.




Hunger, em um sentido mais literal e de fácil alcance, aborda o transtorno alimentar de Florence, a anorexia, conforme testemunho da própria cantora. Para a psicanálise lacaniana, a anorexia não é demarcada apenas pelo não comer alimentos, não saciar a fome por via oral a partir das necessidades do organismo que anseia por satisfação. Para Lacan (1956-1957/1995), a anorexia entra no campo do “comer nada”, esse que aloca o sujeito no simbólico, fazendo-o desejar, mas evidenciando que alimento algum tem o potencial de atender a esse sintoma: o sintoma surge como uma metáfora e, como ver-se-á mais à frente, nenhum objeto é capaz de restaurar a falta, componente indispensável para que os sujeitos sejam desejantes, desejo esse jamais tamponado. Desse jeito, o sujeito acometido pela anorexia mental alimenta-se do nada, estabelecendo uma cisão entre o Eu e o Outro, junto de toda a matéria disponibilizada por essa instância, que ludibria o sujeito. O negar alimento posiciona o Eu em uma operação fálica, deixando-o em oposição a esse Outro e inserindo imaginariamente no seu próprio campo a falta.

A estátua no videoclipe pode referenciar o desejo do corpo perfeito, já que na sociedade em que vivemos existe uma pressão estética pela indústria da beleza que é maciçamente imposta socialmente, fazendo com que os sujeitos se sintam impelidos a se encaixar nos padrões de beleza estabelecidos por um imaginário capitalista que lucra a partir da falta dos sujeitos, explorando-os e os levando às últimas consequências quando não o atingem de forma satisfatória. Isso ocorre devido aos sujeitos serem efeitos da linguagem. Nesse sentido, o seu inconsciente surge na mesma, sendo introduzidos no Eu códigos que estabelecem a sua conduta e seus anseios. Na anorexia o sujeito questiona o desejo do Outro, uma vez que o desejo desse passa a ser o desejo do Eu, e a separação será evidenciada pelo papel ativo do sujeito quando esse questiona o objeto do seu desejo, e se essa falta é intima da sua condição. Portanto, o sujeito se emancipa da cadeia de significantes fundada pela discursividade do Outro.

Na medida em que os signos do Outro são impostos ao sujeito, ele acaba por estabelecer uma série de comportamentos muitas vezes desprazerosos, mas que acabam por se tornar prazerosos ao trazerem um alívio das energias pulsionais. A ambiguidade torna-se um critério para que a vida seja possível, caso o indivíduo siga essa narrativa. Contudo, é nos espaços do discurso que outras interpretações acometem o Eu. Para o anoréxico, a trajetória pode ser fatal, pois na separação entre o Eu e o Outro o sujeito questiona esse vínculo para desejar por si, e não a partir do que lhe fora dado como imperativo. O sujeito concebe sua emancipação mesmo que através de sua vida em troca, já que “sob a forma da falta que ele produziria no Outro por seu próprio desaparecimento” (Lacan, 1960/1998, p. 858).


At seventeen I started to starve myself I thought that love was a kind of emptiness And at least I understood then the hunger I felt And I didn't have to call it loneliness


A anorexia poderia ser entendida como uma pulsão de morte, ocupando-se de preencher a falta de quem sofre, em uma tentativa de realizar o desejo. Na canção, Florence refere-se à tentativa de reprimir esse vazio, recalcando o que a aflige e deslocando as energias conflitantes em direção ao amor na esperança de se sentir menos sozinha. Consequentemente, o que a circunda torna-se nada, e o vazio acarreta a incapacidade de consumir, de experienciar. Ela definha à distância. Não causa estranhamento pensar que, não raras vezes, o surgimento dos sintomas anoréxicos ocorre na adolescência, como expõe Florence ao relatar ao seu caso. De acordo com Freud (1905/2016), é na fase genital que se recorre à uma recapitulação do Complexo de Édipo, e a função paterna terá sua influência de forma distinta na maneira como o laço entre filho e mãe é desmembrado. É nesse momento que o significante feminino para as meninas surgiria como uma falta primordial, constituindo a anorexia em uma fantasia de não reconhecimento do Outro fálico que lhe faltaria.

No videoclipe, a estátua está cercada de homens que a observam. Na sua superfície é possível ver fragmentos, possibilitando o encontro de uma estrutura oca. A opacidade da estátua poderia ser pensada como uma possível alegoria para um sujeito que pode ser inundado pelos desejo do Outro, ou um sujeito que tem a si mesmo como objeto desejante. A estátua ainda representa o corpo da indústria da beleza, uma meta a ser alcançada: um corpo que causa fascínio, que causa confusão, e, por consequência, propaga o sentimento de impotência e de vazio dos sujeitos interpelados pelo Outro.




É do fascínio que surge o refrão que repete: we all have a hunger; fome essa que muitas vezes não é notada. Ela movimenta o sujeito para o liame social sem que ele perceba as suas condutas sendo contidas e restritas, para permitir a convivência social, e afastando os sujeitos da anarquia, pois de certa forma a anorexia entra nesse campo: ao desafiar o Outro e se deixar exaurir pela fadiga. o sujeito fará do seu corpo o próprio falo, no qual ele alcançará a promessa de desejar por si, como podemos notar na estrofe a seguir:


Tell me what you need, oh, you look so free The way you use your body, baby, come on and work it for me Don't let it get you down, you're the best thing I've seen We never found the answer but we knew one thing


O uso do corpo como objeto para separar-se do Outro é uma forma de manifestação política. Por mais que o corpo magro ao extremo, em pele e osso, consumido por si, surja como esse desafio, ele também deflagra o ressentimento e o descontentamento da sociedade para com esses sujeitos da anorexia. Suas existências como corpos desejantes vão contra as leis instauradas pelo Outro que, mesmo não atingindo o anoréxico, tocam diversos outros sujeitos, outros Eus que terão os seus desejos inquiridos por essa onipotência. Sendo assim, para os sujeitos ditos “sadios” a sua imagem é a conjunção comum para se reconhecer um outro. O anoréxico deixa sua forma humana para adotar um corpo amorfo, volátil, prestes a ruir e evidenciar a fragilidade do sistema no qual todos estão imersos e cegados, a carne desses sujeitos ou, pelo menos, a pouca que lhes resta, é a única vestimenta que eles têm, e é através dela que se movimentam e são condenados, como canta Florence: they’re gonna crucify me.

Para Lacan (1956-1957/1995), o desejo pode ser visto como um investimento de representação para o qual o objetivo é alcançar a satisfação. O corpo do anoréxico surge como um objeto, fazendo as pulsões reforçarem o dever de atingir o objetivo terminal da satisfação. No entanto, o objeto suscita uma falta, e essa sendo o próprio corpo coloca o indivíduo diante de um paradoxo: sustentar a ausência desse corpo ou configurar um. Esse objeto é essencial para que o homem se relacione com a realidade de forma ponderada.

As aberturas no corpo da estátua podem, ainda, configurar uma representação inconsciente, pois a escuridão remanescente tem o predicado de ser investida de energia libidinal, e por entre esses hiatos na extensão exterior da estátua é possível produzir um símbolo no lugar em que a falta se faz presente, onde o próprio corpo enquanto significante se ausenta. Florence não parece temer esse jogo de poderes que reconfiguram os recursos linguísticos quando procura por símbolos que não podem ser representados, pois eles marcam o mundo o sendo. Existe um limite na linguagem, e esse símbolo inominável é o que permite a existência dos outros, por conseqüência, a concepção de que, na canção, Florence coloca-se à mercê da própria falta, e que nada ao seu alcance fará com que ela altere esse quadro, um enigma insuperável. Florence chega a ironizar essa rebeldia, pois ela sabe que é mundana, e essa guerra não irá desarticular a cadeia de significantes, mas apenas significar a sua própria morte, então ela canta:


Oh, and you in all your vibrant youth How could anything bad ever happen to you? You make a fool of death with your beauty, and for a moment

Nessa estrofe, é possível observar uma antítese, uma ambivalência entre as forças que comporiam a psique, conforme exposta nos versos. No primeiro, a energia pulsional tenta ser extravasada, com confiança. A autora faz uso da sua juventude como uma arma para se posicionar diante do Outro, não reconhecendo o desejo do Outro como sendo o seu. Já no segundo verso, demonstra uma hesitação, fazendo-a se indagar quanto ao poder que ela carrega. Ela é resistente como imagina ser ou é a tola de sua própria narrativa? Ao longo do verso seguinte, são destacados momentos em que consumiu o nada, e os caminhos possíveis para o seu próprio equilíbrio:


I thought that love was in the drugs But the more I took, the more it took away And I could never get enough I thought that love was on the stage You give yourself to strangers You don't have to be afraid And then it tries to find a home with people, or when I'm alone Picking it apart and staring at your phone


Nesses versos, voltamos a ver a tentativa de deslocamento do mal em outras representações que de nenhuma forma chegam a preencher ou satisfazer a imensa falta e a impossibilidade na qual ela está submetida. A maneira pela qual tenta se privar de seus sentimentos e da consciência do Outro no seu corpo parecem contribuir com o adoecimento e o ressentimento, facilitando a passagem da aflição para a consciência, ou configurando um percurso de aniquilação rumo às drogas e à doação para estranhos que não podem compreender o peso de seu âmago.

Nesse ínterim, a canção traz referência a um saber acerca de que a falta jamais será preenchida, e que mesmo sendo aterrorizante o cenário no qual as nossas vidas são tangenciadas, há formas de libertar o desejo da alienação. Por fim, Florence canta:


And for a moment I forget to worry


Torna-se possível inferir que é nesse vislumbre que se dá a percepção de que há formas de se relacionar com o Outro por intermédio da linguagem, de forma a se constituir uma subjetividade para além de um corpo em falta. No videoclipe, a estátua, antes símbolo que parece mediar esse registro, reveste-se de diversas plantas, um retorno à vida.





REFERÊNCIAS


Freud, Sigmund. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras completas Volume 6. Companhia das Letras. (Originalmente publicado em 1905).


Lacan, Jacques. (1995). O Seminário livro 4, A relação de objeto. Editora Jorge Zahar. (Originalmente publicado em 1956-1957).


Lacan, Jacques. (1998). A posição do inconsciente no Congresso de Bonneval. In: Escritos. Editora Jorge Zahar. (Originalmente publicado em 1960).


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Andrew Oliveira é natural da própria condição humana e pertence ao tempo. Atualmente, é estudante de Psicologia na FURG, participante do LEXPARTE (2021 - atualmente) e do NUPPADES. Ama a literatura e crê que a linguagem é o caminho para humanizar o outro e a si. Além disso, é aspirante a escritor e a poeta, deixando-se se perder nas infinitas tonalidades de azul no céu. Mesmo antes de entrar na Psicologia já sabia que a Psicanálise seria o seu meio para contar essa história.

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