Processos de subjetivação feminina em A Amiga Genial, de Elena Ferrante
- Daniela Delias
- 21 de nov. de 2022
- 8 min de leitura
Por Bruna Medeiros Molina
Orientação: Daniela Delias
“Queria volatizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu.” (FERRANTE, 2015, p. 15). É assim, que Lenu, a narradora do livro A Amiga Genial, dá início a história de sua amizade com Lila, em uma tentativa paradoxal de marcar os vestígios da amiga, que deseja o seu próprio desaparecimento. O prólogo do livro, inclusive, tem como nome “Apagar os vestígios”. O que inicialmente parece uma contraposição, mostra a completude de duas meninas que nos contrastes se tornam uma só.

O cenário que acompanha a infância e a adolescência de Lila e Lenu é um bairro da cidade de Nápoles, na Itália, pós Segunda Guerra Mundial, que é constituído pela sua historicidade de miséria e brutalidade. A autora descreve que cidades como Nápoles são “lugares sem comunidade, bastidores para indivíduos atordoados pela dor” (FERRANTE, 2017, p.78), tamanha a complexidade e as nuances que constroem esse espaço. Para as personagens, que fazem parte de uma classe social desfavorável, o contraste de poderes entre os moradores e a família é muito marcante, por exemplo.
Da mesma forma, a realidade intrafamiliar também é um reflexo desse cenário que compõe suas vidas. Sendo famílias compostas por muitos filhos, pais relegados ao trabalho braçal e mães servindo como donas de casa, a violência física e verbal também marca presença dentro do contexto familiar. Além disso, as condições opressoras externas, como a falta de emprego, dinheiro e comida, causam uma frustração tamanha que o pouco espaço para a ternura passa despercebido.
Entre outras particularidades, as personalidades de Lenu e Lila parecem se diferenciar principalmente pela forma como lidam com essas situações que as colocam frente ao estilhaçamento. Já na infância, o destino das duas é traçado definitivamente, quando uma tem a possibilidade de continuar os estudos, saindo do bairro, e a outra permanece enraizada àquele cenário. Lenu, ainda que se torne uma adolescente insegura e nervosa, consegue conter suas margens, sem apresentar sintomas tão intensos, enquanto Lila tem episódios constantes de desmarginalização.
A sensação de que vivemos tudo em conjunto com as personagens, uma vez que em algum momento também já nos enxergamos naqueles cenários, é avassaladora, principalmente no que se refere ao sentimento de que não há espaço para o corpo durante a construção do nosso eu feminino. Isso porque a literatura pode ser vista como reflexo da realidade, usando de fatos palpáveis para narrativas, que podem pertencer a qualquer pessoa. Ainda que a história das meninas aconteça nos anos 60, a modernidade segue constituída de hostilidade e opressão, podendo ser até mais perversa, afetando as estruturas e relações sociais.
Tais apontamentos parecem-nos relevantes para a compreensão dos processos de subjetivação, considerando que colocam em evidência a ascendência negativa que relações de poder opressoras podem causar no desenvolvimento emocional e social dos sujeitos, pois “a maturidade completa do indivíduo não é possível no ambiente social imaturo ou doente” (WINNICOTT, 1990, p. 80). Nesta direção, neste breve ensaio, discorremos acerca dos processos de constituição do self em Lenu e Lila durante suas infâncias e adolescências, tomando como ponto de partida que estas se veem invariavelmente atravessadas pelo cenário hostil e brutal em que vivem.
As poucas aparições dos familiares da narradora, tanto na adolescência como na infância, se dão por discussões opressivas, situações de humilhação e trabalho doméstico, o que nos dá um indicativo das representações de afeto de Lenu. Em relação à mãe, ela diz: “o problema era a minha mãe, com ela as coisas nunca iam por um bom caminho. Já na época, quando eu tinha pouco mais de seis anos, tinha a impressão de que ela fazia tudo para me mostrar que eu era supérflua em sua vida. Não tinha simpatia por mim, nem eu por ela. Seu corpo me dava repulsa, o que ela provavelmente intuía." (FERRANTE, 2015, p. 37).
Ainda que Lenu afirme que é preferida pelo seu pai e até gostada pelo seus irmãos, a personagem não possui memórias carinhosas com eles e o que se dá são fragmentos do jantar, que é o único momento em que toda a família se reúne, o que pode nos aproximar de várias questões sobre o self de Lenu. Para Winnicott, primeiramente, “a integração da criança em um eu unitário não acontece de maneira automática: ela é uma aquisição que necessita que certas condições ambientais estejam presentes” (BARRETO & TOSTA, 2017). E para isso é necessário não só a confluência entre um ambiente favorável como com uma mãe suficientemente boa.
Uma das características do cuidado materno suficientemente bom seria a sustentação materna, que está relacionada com a capacidade da mãe identificar-se com o bebê. Assim, para o autor, quando essa sustentação é deficiente, “é produzida na criança uma enorme aflição que é fonte, por exemplo, da sensação de despedaçamento. O autor denomina como angústias impensáveis.” (BARRETO & TOSTA, 2017). Dessa forma, quando existe uma ameaça do isolamento do self por falhas no cuidado materno, a melhor defesa contra isso é a organização de um falso self, que tentará atender as exigências da realidade externa passivamente, desenvolvendo relações de submissão, que é uma das principais características que compõem Lenu na infância e adolescência. Inclusive, a narradora faz uma constatação que nos aproxima do que poderá ser o seu falso self se consolidando em Lila, quando afirma que acha que talvez tenha se fixado a ela por suas “pernas magérrimas, ligeiras e em sempre movimento” (2015, p. 38) e que “caminhando atrás dela, seguindo sua marcha” (2015, p. 38) se desprenderia da maldição da mãe, mas para isso teria que “regular-se de acordo com aquela menina” (2015, p. 38).
O cotidiano intrafamiliar de Lila, no entanto, não aparece com tantos detalhes, mas as várias aparições de seus componentes na história revelam que a personagem vive uma violência familiar até um pouco mais severa. Sendo composta por uma família numerosa, o sustento da casa era muito escasso, o que já provocava inúmeras discussões. Além disso, um dos episódios mais marcantes de suas infâncias é quando Lila é jogada pela janela de sua casa após uma fervorosa discussão com o pai por sua insistência em querer continuar os seus estudos, quando ele era contra.
Outra figura masculina de autoridade é o seu irmão Rino. Em várias passagens se refere a ele com satisfação por conta de seu companheirismo, mencionando que os dois conquistariam uma vida muito rica para si e para os pais. Mas Rino, herdando a fúria do pai e o poderio do irmão homem mais velho, também trata Lila com muita agressividade, o que poderá ser reflexo do seu também comportamento hostil desde a infância, se igualando ao cenário. Dessa forma, Miura, Neto, Paixão e Redondo (2011) explicam que esse indivíduo, que teve uma falha no desenvolvimento do seu self, se submeterá ao ambiente: “cola-se ao objeto com medo de perdê-lo, pois é como se não tivesse mais nada, apenas o ambiente; pois também ao isolar o verdadeiro self, oculta as necessidades mais pessoais, a vida.”
Ao ocultar a vida, essa se destitui do seu sentido existencial, o que fará com que esse sujeito crie um bem-estar falso, que poderá se romper em qualquer momento emocionalmente intenso, dando uma sensação de aniquilação e angústia. Tanto a perda de sentido da vida como o rompimento desse bem-estar falso podem se configurar também parte da subjetividade de Lila, não só por várias passagens indicarem sua insistência em desaparecer, mas também pelas suas inúmeras experiências com a desmarginalização.
Em seus anos do fundamental, Lenu e Lila enxergaram nos estudos a fonte de sua riqueza no futuro, pois tiveram contato com livros, que abriam pela escrita a possibilidade do empoderamento e da vida. Mas esse destino foi interrompido, uma vez que os pais de Lila não aceitaram que ela desse continuidade à escola média, diferente de Lenu que foi aprovada com grande esmero. Esses acontecimentos geraram sintomas tênues entre as duas personagens, que desejavam escapar do bairro e das opressões familiares. Lila volta a se mimetizar ao cenário, focando em planos na sapataria com o irmão, perdendo o interesse em seu próprio estudo, mas extremamente consciente dos estudos da amiga, incentivando a seu modo pela sua continuidade, inclusive, criando o título de amiga genial para Lenu.
Durante o restante da história, Lila passa a negar cada vez mais os estudos e os livros, muda de ideia em relação a ficar rica através da escrita. Transfere seu mal-estar para esses artefatos, glorifica os elementos do bairro e se desinteressa pela vida estudantil de Lenu. Em uma passagem, ela questiona o que Lila tem lido e essa responde brava: “não pego mais nada, os livros me fazem mal a cabeça” (p. 182), e já na adolescência consolida a negação das palavras de Lenu, ao dizer: “não quero ler mais nada do que você escreve, [...] porque me faz mal” (p. 300). Assim, retorna ao que conhece, ou seja, ao que seu falso self concebeu, o trabalho braçal da sapataria e a hostilidade dos homens do bairro.
Diferente das impressões das outras meninas do bairro durante a infância, Lila negava a feminilidade imposta de sua época, dizendo que jamais menstruaria ou que jamais se apaixonaria por um homem. Ao fazer tais afirmações, confirmava que, ainda nova, já percebia o simbolismo desses significantes, da possessão masculina através deles e da violência e aprisionamento que, se ela deixasse isso acontecer, implicariam sobre ela. No entanto, enquanto Lenu sai do bairro para estudar, Lila permanece ao se casar com o salsicheiro rico do bairro. Suas previsões foram tão certeiras que, após o casamento, passou a sofrer violência sexual e doméstica. Por outro lado, Lenu, ainda que tenha se emancipado intelectualmente, vê novos desafios identitários surgirem ao atravessar a cidade. Sem Lila, Lenu não tem onde consolidar seu falso self, manifestando vários momentos de estilhaçamento de si mesma, tornando-se mais vulnerável e sofrendo abuso sexual. Além de perceber ainda mais sua miserabilidade comparado aos moradores da cidade grande, Lenu não possui nenhuma certeza além de que deveria estar vivendo a vida de Lila.
Tendo em vista este cenário, é possível perceber uma rede de identificações: duas meninas tentam constituir a si mesmas e a noção de ser feminino enquanto se espelham uma na outra para encontrar uma emancipação durante suas infâncias e adolescências. Ferrante (2017) afirma que “o eu feminino com a sua longuíssima história de opressão e repressão, tende, revoltando-se a estilhaçar, a se recompor e a se estilhaçar novamente de maneira sempre imprevista.” Ainda que esse estilhaçamento se demonstre em um sofrimento pujante, ao recompor-se, poderá perdurar em um amadurecimento ou reconstrução do próprio eu, ainda que com falhas.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Aline Xavier; TOSTA, Rosa Maria. Onde está a criança?: Um caso de amadurecimento precoce e falso self. Bol. - Acad. Paul. Psicol., São Paulo , v. 37, n. 93, p. 171-185, jul. 2017.
FERRANTE, Elena. A amiga genial. 1ª ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
FERRANTE, Elena. Frantumaglia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2017.
MIURA, Paula O.; NETO, Alfredo. N.; PAIXÃO, Rui.; REDONDO, Antônio. J. L. A constituição do self a partir das relações familiares abusivas: um enfoque winnicottiano. Psicologia Revista, [S. l.], v. 20, n. 1, p. 43–66, 2011.
WINNICOTT, Donald. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
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Bruna Medeiros Molina é naturalmente cassineira, estudante de Psicologia na FURG, participante do GESCEM e do NUPPADES. Acredita e defende em uma psicologia despatologizante e aliada ao povo, mesmo que precise ser crítica demais. Na busca de entender o caos de dentro e o caos de fora, se encontra e se desencontra na literatura, no cinema, na política e na escrita. É obcecada em reparar.
Daniela Delias é professora do Curso de Psicologia da FURG, coordenadora do NUPEBI (2007-2022) e do NUPPADES (2022-), apaixonada por psicanálise e arte. Autora dos livros de poesia Boneca russa em casa de silêncios e Nunca estivemos em Ítaca (Patuá 2012/2015) e Alice e os dias (Concha/2019). Nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul. Mora na Praia do Cassino, em Rio Grande, onde vive a fotografar
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