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Sobre "8 horas por dia", o primeiro livro de poesia de Ju Blasina

Por Daniela Delias



"vara o dia

varrendo a noite

cata um sonho

sonha um vento

algo que fique

por pouco

por muito pouco

um cisco que seja

algo que signifique"


Alice Ruiz


Em 1899, quando preparava o livro A interpretação dos sonhos, Freud escreveu uma carta a Fliess, um de seus mais importantes interlocutores, dizendo que “Invariavelmente, o sonho visa a realizar um desejo que assume diversas formas. É o desejo de dormir! Sonhamos para não ter que acordar”. Mais adiante, em um texto chamado O poeta e o fantasiar, assumiu que os sonhos nada mais são do que fantasias de tal modo significativas que constituirão para o sujeito, quando em vigília, sua relação com a realidade.


Parece-me no mínimo mágica a pequena reunião de acasos que põe diante de meus olhos, em um mesmo final de dia, uma digressão freudiana sobre o sonho, o precioso livro de Juliana, e um verso magnífico de Roberto Piva: “A noite vem raptar o que sobra de um soluço”. Sorrio, é claro, pensando nos acasos brilhantemente descritos por Kundera e naqueles que trouxeram, no final de 2012, a poesia de Ju Blasina para a minha vida. Sorrio e me surpreendo com o fato de que ainda não nos encontramos pessoalmente. E lembro que ouvi seu nome pela primeira vez em uma delicada e inesquecível conversa sobre o amor e a parentalidade.


Pergunto-me, agora, sobre um dia na vida de Ju. Quantas horas são necessárias para que se ocupe de manter os olhos abertos para o sonho? Quantos pedacinhos de alma deseja juntar e fazer voar ao narrar pequenos pecados, criando respostas para perguntas ainda não feitas ou embalando e escrevendo versos ao menino do sorriso que jamais caberá em um poema? O que é preciso para que o tempo passe silvando feito um assovio e a vida devolva à memória o encanto de quando se dormia e sonhava bem mais que 8 horas por dia?


Escrever, talvez. Crer que em algum lugar entre a ilusão e o desamparo, onde antes o amor era tudo o que se via, ergue-se, resiliente, o sonho, o humano, a feminilidade. Mas, para isso, é preciso mergulhar em abismos absurdos. É preciso permitir-se a inquietude, o estranhamento:


... lamentava

pelo jeito estranho

que tem o tempo

de mudar os rostos

de afastar os corpos

de [con]torcer os verbos

de apagar os nomes

ou algo assim

desse jeito.


Como diz a poeta em um dos mais belos textos que compõem este livro, o peso das horas nos achata. E elas, as horas, impõem-se vertiginosamente entre seus versos como um corpo, tamanha a força e a materialidade com que invocam o fato de que, entre vazios e momentos de bravura, por dentro somos feitos de gente. E é ali, onde o tempo se rompe, mostrando-se potencialmente desordeiro e descontínuo, que as horas de sonho se desdobram infinitamente, aproximando vida e poesia:


A pena que se perdeu do pássaro

morta e libertar, agora espeta

guardada na prisão eterna

dentro do meu travesseiro

a pena de si mesma é azul

incapaz de sonhar que voa, incapaz

de prender versos em metáforas

ainda que houvesse vento e nanquim.


Cada poema de 8 horas por dia parece dizer: volte aqui. Sirva-se uma xícara de café ou três copos rasos de cerveja. Beba lentamente. Gaste um pouco de seu tempo vestindo-se de outro: o menino; a mãe; a mulher; a barata que amedronta; o homem de bigodes que nunca, nunca vem. Esteja em meu tempo, em meu lugar. Toque-me com a ponta dos dedos. Porque poesia é buraco sem fundo, avesso, descostura. É dar de comer aos bois e seguir em frente, deixando um cisco que seja, como disse Alice. E a Ju sabe muito bem disso. Portanto, caro leitor, pegue esse livro pela mão. Dê a ele o seu peito. Leve-o para ver o mar.


...


Título: 8 horas por dia Autor: Ju Blasina Gênero: Poesia

Editora: Concha

Ano de publicação: 2017 Número de páginas: 104 Formato: 14x21cm

Livro de estreia de Ju Blasina, 8 horas por dia apresenta 51 poemas organizados em quatro partes – Pequenos pecados e outros casos; Respostas para perguntas ainda não feitas; Poemas para o menino que não cabe em livros; e Histórias para bois ou quaisquer bichos insones – que, no conjunto, revelam um mundo lírico potente em que as horas tomam corpo e se desdobram. O fazer poético, o feminino e a maternidade são temas presentes na obra.


Imagem: Concha Editora

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